sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Caminhos de uma globalização cultural



1) Introdução

Para dar uma pequena aproximação das implicâncias e do significado de uma Globalização Cultural, vamos ter que remontar-nos aos primeiros hominídeos, que longe de serem primitivos para nossa visão atual, bem distantes da nossa realidade, estabeleceram os padrões de comportamento e de caráter de uma humanidade incipiente e que até hoje permanecem latentes nas complexas relações sociais, políticas e econômicas do homem moderno.
Estes seres, não tão diferentes de nós mesmos, deram seus primeiros passos para longe do conhecido, explorando novas fronteiras, conquistando novos espaços. Mas isto não se resume a uma longa jornada de expansão territorial, porém sim à projeção de um desenvolvimento continuo de estratégias de sobrevivência, implicando a construção de um coletivo e de tecnologias para apropriação e consolidação do espaço.
Espaço que pode definir-se como um lugar, um território, um mapa mental, onde diversas expressões identitárias e representações da realidade começam confluir, litigando e conflitando com o meio-ambiente e o contexto, junto com práticas que decorrem no desenvolvimento de tecnologias, de cultos e religiões, de grupos sociais, do perfil humano de um ser consciente da sua própria vida e morte; na conformação do que entendemos como cultura.
Através dos milênios, o ser humano se apropriou de cada aspecto do mundo, a partir de verdades construídas desde distintos tipos de juízo e de perspectiva, desde as suas necessidades e conquistas, dando lugar à civilização e à historia. Porém, esta tarefa de um mundo humano não fora concebida por um ser particular de forma unilateral, inclusive também não fora produto de sociedades isoladas, mas de um processo de intercâmbio continuo, de aprendizado, de espólios e cessões, de sucessos e derrotas, onde as fronteiras não conseguiram conter mudanças nem invasões, dando lugar a um conjunto de culturas amarradas por elos comuns.
A Globalização é um fenômeno inerente à humanidade, uma humanidade dinâmica e curiosa, uma humanidade que explora suas percepções e que intercambia valores e verdades continuamente, para poder desenvolver-se e evoluir de forma eficiente e progressiva, dando sentido à realidade e ao mundo que conforma seu espaço. Assim a Cultura, como aspecto fundamental da representação e expressão do mundo e da realidade, que o ser humano constrói, é um aspecto que não permite uma abordagem negativa na sua projeção global, em função de que é o intercambio de tecnologia, de perspectivas, de valores entre as sociedades e os indivíduos o que consolida uma humanidade em constante movimento e crescimento, uma dinâmica que tal vez não tenha fim.

2) Conceitos

I) Globalização

Uma definição básica para globalização requer em principio estabelecer o que é o Local e o que é o Global, para poder relacionar este conceito com um processo contemporâneo.
O Local refere-se ao espaço correspondente a um grupo social, político, econômico ou cultural específico, onde de se desenvolvem práticas endógenas cuja projeção só afeta e incumbe aos sujeitos e objetos próprios dessa espacialidade. A dinâmica das práticas, das expressões e das representações desses grupos locais, tem a ver com fatores de identidade e coesão, sendo o espaço Local o lugar específico e único onde paulatinamente se organizam, se acentuam e conflitam todos os aspectos culturais de forma intrínseca.
Sendo o Local uma questão inerente a um grupo e a um espaço particular, o Global pode ser definido como o conjunto de Localidades, numa inter-relação extraterritorial onde a fronteira, o limite, é o espaço dado pelo mundo geográfico e social de forma holística.
No espaço Global, dão-se as relações interlocais e intralocais entre os diferentes grupos, sejam estes endógenos ou exógenos, num intercambio continuo, como maior ou menor dinâmica, com maior ou menor incidência, porém de forma efetiva, afetando de forma diversa a configuração do grupo Local, e por vezes transformando-o em um grupo heterogêneo relacionado com outros grupos por vínculos culturais, sociais, políticos ou econômicos comuns, o que por definição corresponde à Globalização.

II) Cultura

A definição de Cultura possui varias acepções, entre elas a qualidade de um conjunto de fenômenos, expressões, representações, técnicas e tecnologias próprias de um grupo social; porém Cultura implica alguns outros elementos fundamentais relacionados com a identidade, as práticas e as relações sociais entre indivíduos de um grupo social específico e deste com outros grupos.
Assim a Cultura não só determina o perfil de determinado grupo e a suas estratégias e cosmovisão, mas também a forma com que este grupo se relaciona com outros complexos culturais, como os recebem, os filtram, os adaptam ou rejeitam, como os incorporam ou como os contestam; em definitiva, como se efetua o intercâmbio de fatores e as apropriações de valores interlocais e intralocais.
O desenvolvimento do ser humano esta acompanhado de uma evolução dinâmica da cultura, sendo que a cultura é um processo de apropriação dos elementos necessários para compreender o mundo e assim satisfazer necessidades, através de estratégias que permitam um melhor aproveitamento do meio e do contexto, e ao mesmo tempo a significação da vida através das praticas e das crenças.
A Cultura não é só produção, também é intercâmbio, é aprendizado, é um processo continuo de aperfeiçoamento por contraste, seja por alteridade, seja por troca, observação, transferência; por diversos mecanismos que não implicam só um individuo ou grupo em particular, mas o mundo e sua diversidade.

III) Transculturalização

Um fenômeno contínuo na evolução da humanidade desde seus primórdios é a Transculturalização, o qual poderia ser definido não só como um mero intercâmbio, mas como uma transferência cultural com efeitos concretos sobre grupos sociais, e em uma instancia ulterior, sobre o comportamento e sobre as práticas, a mentalidade e as crenças dos indivíduos.
Este processo ou fenômeno consiste no deslocamento de ideias, práticas, técnicas, tecnologias, até cultos religiosos, de um complexo cultural para outro, resultando em uma assimilação parcial ou total de caracteres, inclusive por contraposição ou rejeição, sempre com uma adaptação ou com uma resignificação local que decorre num novo caráter cultural local.
Esta transferência transcultural, não esta impedida por barreiras territoriais ou espaciais, sequer por limites culturais dogmáticos ou ortodoxos, já que flui através de uma permeabilização contextual, seja por questões de eficiência, de resultados, ou por instâncias afetivas, isonômicas ou de conveniência; como respostas pragmáticas para melhoria de produtividade, como novos paradigmas religiosos, técnicos, econômicos ou políticos com novas respostas para problemáticas recorrentes, entre outras possibilidades.
A Transculturalização permitiu o desenvolvimento e o aperfeiçoamento de tecnologia e técnicas, desde ferramental lítico, estratégias de guerra, modos de cultivo, técnicas de construção, modelos políticos, hábitos alimentares; assim como a difusão de crenças religiosas como o Cristianismo, o Islã e o Budismo; ou como a utilização dos meios de comunicação como jornais, livros, televisão, telefone e internet, para difusão, informação e produção.
Estes entre outros exemplos da dinâmica social local e global dão conta da definição da Transculturalização como uma articulação cultural fundamental, intrínseca e inexorável da humanidade, condutora do seu desenvolvimento contínuo.

IV) Transnacionalização

Nação é uma noção recente em relação a um espaço de caráter político que reúne características territoriais, legais e sociais específicas, dando lugar a fronteiras, a soberanias, a controles e barreiras, com o objetivo de concentrar aspectos de poder, cultura e território dentro de limites definidos através de regulações normativas vigentes e assegurados pelo poder político e militar efetivo.
Por tanto, a Transnacionalização é um fenômeno que interfere com esses limites, e que através da permeabilização de fronteiras, sejam estas territoriais, culturais, políticas ou legais, possibilita a incidência de fatores culturais, sociais, políticos, técnicos, tecnológicos ou econômicos exóticos dentro do complexo nacional ou local.
A Transnacionalização está intrinsecamente vinculada ao fenômeno de Transculturalização, já que corresponde à articulação da transferência de fatores e valores através dos limites locais, uma transferência interlocal por sobre todas as fronteiras nacionais.
E apesar da concepção de nação ser uma categoria moderna, poderia afirma-se que este não é um fenômeno da modernidade, porém inerente ao devir histórico da humanidade, onde distintas civilizações através do intercambio, da guerra ou da conquista eliminaram e permearam fronteiras transferindo por imposição, assimilação ou por afinidade, fatores externos as sociedades em contato, nem sempre de forma unilateral, mas também de forma recíproca.
A Transnacionalização atualmente esta vinculada a uma homogeneização cultural, econômica, política e territorial geral, porém os mecanismos de transferência outorgam para este intercâmbio um caráter heterogêneo confluente, onde por meio de elos comuns construídos ou inerentes se afirma o vinculo que suporta as diferenças sociais e nacionais, recriando as fronteiras sem elimina-las por completo, como partes do uma colagem.

V) Territorialidade

A definição de territorialidade é fundamental para explicar o devir da humanidade, já que os grupos sociais, assim como a identidade dos seus indivíduos e das suas representações, e a construção de praticas, cosmovisões, tecnologias e técnicas, se relacionam diretamente com o espaço territorial, com os limites territoriais definidos espacialmente, seja por fatores políticos, econômicos ou religiosos.
A territorialidade é o espaço específico onde se desenvolve um grupo social particular em todos seus aspectos, culturais, econômicos, políticos, religiosos, com vínculos de pertença e identidade, que permitem a apropriação espacial e de recursos, para seu próprio desenvolvimento, sem interferências externas.
Apesar disto, a territorialidade é permeável, é acessível ao intercambio e à invasão, é incindível à perda, à transformação ou à diminuição do espaço ou dos recursos, por tanto a territorialidade é um lugar de conflito e tensão, que se rearticula, porém sem mudar, porque em decorrência produziria a eliminação do fator identitário e de pertença que define ao grupo social especialmente a sua cultura, e por tanto o desaparecimento desta como tal.
Como realidade ou idealidade, a territorialidade opera em distintos aspectos, definindo nações, países, blocos políticos, blocos econômicos, reinos, famílias, religiões; mas suas fronteiras não são formais, são só ideais imutáveis que podem ser articulados em fronteiras políticas e geográficas concretas, mas as que transcendem através das culturas.

VI) Migração

Um fenômeno característico do ser humano é o deslocamento, é a mudança e a procura constante de novos espaços, fundado em diversas motivações, especulativas, de curiosidade, econômicas ou de sobrevivência, com uma constante, a expansão e a ampliação de fronteiras.
Desde a saída inicial da África, passando pelo seu estabelecimento em todos os continentes, a mobilidade do homem foi continua. A exploração deu lugar ao nomadismo, o nomadismo ao sedentarismo, o sedentarismo à emigração e à imigração, todos estes processos migratórios relacionados com diversos fatores, e com outros processos e fenômenos.
A migração é uma mudança de um local para outro, de habitat para outro, de um espaço para outro, porém essa mudança espacial também implica câmbios comportamentais e culturais, adaptações de práticas e diversificação no uso de recursos, afetando alguns traços culturais do deslocado. No encontro de culturas, apesar de existir o peso hegemônico do local, a migração produz uma transferência, com efeitos no longo prazo, projetados não só na cultura migrante como na cultura receptora, o intercâmbio nem sempre é equitativo, pelo contrario, mas a influencia é recíproca com consequências diretas e inevitáveis.
Distintos tipos de migração, e de incentivos e obstáculos para este tipo de mobilidade podem ser encontrados na historia e na atualidade, com efeitos de maior e menor intensidade, destacando-se uma influência continua no desenvolvimento cultural local e global, o que promove uma integração necessária sob o conflito de reafirmação de identidades e de espaços locais cujo aspecto negativo vai se diluindo no correr do tempo e na inter-relação das culturas.
A migração enriquece as culturas locais, e pode ser vista como um mecanismo de transferência cultural, onde a globalização atua como guia para o migrante no mapa da confluência interlocal, com canais informação e de comunicação acessíveis, com pontos referenciais em comum atuando de vinculo afetivo, com programas e legislação migratória fundada em direitos fundamentais e universais; apesar qualquer impedimento que a realidade possa impor.

3) Teoria

A globalização cultural, segundo a maior parte das publicações, estudos, análises elaborados, é abordada desde um aspecto negativo, o qual destaca como fator predominante do processo globalizador a difusão periférica de valores hegemônicos objetivados para uma homogeneização de valores e de práticas, tendente a impor uma forma de controle efetiva desde um centro de poder político-econômico; isto, sem dar conta dos diversos efeitos que traz a globalização no aspecto cultural, nos processos de transferência cultural, dados a partir da permeabilização de fronteiras e da influência recíproca entre as culturas promotoras e as culturas receptoras.
Outro aspecto desconsiderado são os processos de construção e desenvolvimento socioculturais decorrentes dos mecanismos da globalização, especialmente o relacionando à evolução progressiva e à dinâmica dos aspectos técnicos, tecnológicos, religiosos, políticos, sociais e culturais no devir da humanidade, começando nos primórdios da humanidade, quando o mundo, estava reduzido a territorialidades mínimas particulares, até a atualidade, com as complexas relações sociais existentes e as espacialidades máximas e gerais.
O intercâmbio, a observação, a troca e a transferência nos distintos aspectos e expressões culturais foram articulações constantes entre diversos indivíduos, povos, civilizações, religiões, nações e estados; a guerra e a conquista, através da imposição, que ao mesmo tempo gerava uma assimilação recíproca; a transferência de modelos religiosos e econômica, resultante em distintas adaptações divergente do padrão hegemônico original; de ideias, de políticas e de modos de organização social, também reconfiguradas localmente, e reafirmadas como próprias; importação de culturas de consumo, técnica e tecnologia, resignificadas e apropriadas pelo meio cultural e social; e seja qual for o objetivo primário, a afetação recaí sobre ambas as partes numa influencia mútua.
Uma desconfiguração ou uma desagregação territorial poderia trazer efeitos negativos sobre uma cultura dada, inclusive a sua desaparição, porém no processo globalizador a territorialidade é preservada, só as fronteiras geopolíticas e as barreiras jurídicas particulares tendem a permeabilizar-se, a homogeneizar-se a adequar-se a modelos gerais, onde a pesar de uma condição sociopolítica geral, é mantida a identidade nacional e cultural.
Na articulação dos processos da globalização, a transculturalização e a transnacionalização produzem efeitos de difusão global e de resignificação local nos aspectos culturais. A pesar da imanência de um poder ou de uma fonte central de modelos, ideias e práticas, a recepção periférica constitui também um feedback sobre os aspectos culturais incidentes, ao existir uma reinterpretação e uma apropriação local desses fatores de implicância cultural, que terminam transferindo-se ao caráter global difundido.
A cultura como expressão, como representação e articulação da realidade e do contexto, é adaptativa, e qualquer influência contribui ao seu desenvolvimento e consolidação. Num plano amplo e geral, a globalização como uma instância de difusão e transferência, funciona reciprocamente no aspecto local de forma heterogênea; já no aspecto global, de uma forma mais homogênea, atua adequando os parâmetros difundidos contextualmente.
A globalização cultural promove o desenvolvimento das culturas locais sem destruí-las, influenciando-as e modificando-as, mas sem conseguir desarticular seus aspectos identitários e territoriais, que se resignificam e adaptam contextualmente, como tem sido durante todo o decorrer do devir da humanidade, moldando seu caráter e a condição humana.

4) Conclusões

Uma primeira leitura nos diria que a globalização é um monstro gigante que quer engolir tudo no seu passo, deixando uma única trilha para seguir. Porém a globalização contemporânea possui um valor intrínseco, próprio e característico da humanidade, uma dinâmica permanente, uma ampla projeção difundida pela capacidade de uma comunicação rápida e eficaz que dispõe de informação massiva e disponível, um valor dado à potencialidade evolutiva e progressista do homem que procura o aperfeiçoamento das suas práticas e o controle do mundo que o rodeia através da explicação, do conhecimento e da previsibilidade.
Homem como cidadão do mundo é cidadão do seu território particular, é gestor da sua cultura, e do espaço dessa cultura, assim como gestor de culturas exóticas incidentes e promotor de adaptações. Conceitos como multiculturalismo, diversidade, universalidade, só refletem a confluência de aspectos das culturas locais, de uma forma geral e inespecífica. A globalização faz do ser humano um cidadão global, porém com identidade própria já que a cultura global requer da local e das suas particularidades para pode sustentar-se.
No plano do Direito podemos observar essa contraposição, entre o Local e o Global, entre o Geral e o Particular, e o vinculo territorial existente. O Direito Internacional, o Direitos Universais, o Direito Europeu, os sistemas jurídicos gerais, não conseguem dar resposta às problemáticas e as características locais, e à diversidade de valores e de idiossincrasias. Todo modelo imposto ou transferido globalmente, é readaptado culturalmente, na sua configuração e na sua articulação, na sua projeção Local, passando ser uma construção própria e apropriada do grupo social incidido.
Em definitiva acreditamos que a Globalização Cultural é um fenômeno social positivo e necessário, não só decorrente de fatores econômicos, políticos ou hegemônicos, mas netamente cultural, uma articulação da cultura para o desenvolvimento da cultura mesma, já que por mais que tenha sido objetivada e difundida uma homogeneização cultural global, os processos particulares e a diversidade na conformação das sociedades humanas irão continuar desenvolvendo-se localmente na consolidação de espaços culturais específicos.

5) Referências

· GIDDENS, Anthony. As Conseqüencias da Modernidad. UNESP: São Paulo. 1991
· GIDDENS, Anthony. Medios de Comunicación y cultura popular. Alianza: Madrid. 2001
· KATCHE, Damian Gustavo. Transferencia Cultural en el Genoespacio. Ugycamba: Buenos Aires. 2001
· LEVI-STRAUSS, Claude. O pensamento Selvagem. Papirus: Campinas. 2000.
· SANTOS, Boaventura de Souza. A Globalização e as Ciências Sociais. Cortez: Rio de Janeiro. 2002.
· SANTOS, Boaventura de Souza. El derecho y la Globalización desde abajo. Anthropos: Mexico. 2007.
· VIEIRA, Liszt. Cidadania e Globalização. Record: Rio de Janeiro. 2000.




(Artigo produzido por Damian G. Katche, em colaboração com Luciane Czepelski, Marcia G. Carneiro Lobo, Carla C. de S. Pereira Paschoal , Claudinei Cadena dos Santos e Flavio H. Lopes Cordeiro)

domingo, 14 de março de 2010

Esboço e proposta de análise sobre as particularidades do espaço em audiências jurídicas


Imaginemos, ou talvez possa surgir como lembrança, nosso ingresso numa sala de audiências em instâncias de um julgamento.
O cenário se configura obnubilante perante nossos sentidos, e a nossa qualidade de espectadores e participantes do jogo jurídico, primeiramente, nos solicita percorrer a paisagem que se desenha ao nosso entorno. No imediato, podemos observar uma linha tangente, descendente, traçada desde a vigília mística da aura de um Magistrado disposto no seu altivo estrado, até a submissão do inquirido cujos limites físicos da sua figura permanecem degradados num isolamento permanente. E a hegemonia se reafirma, se impõe sobre os expectantes atores com uma coleção de símbolos, pátrios, religiosos, comportamentais e expressivos, revelando hierarquias autoritárias e institucionais, a soberania, e o perfil moral e místico rodeando à hermética cegueira da justiça que resguarda o equilíbrio da configuração jurídica do Estado.
Neste tipo de espaço, a relação entre os distintos atores, o espaço e a configuração simbólica se apresenta de forma vertical e abrangente, apesar da dinâmica horizontal gerada pela exposição de verdades e argumentos nas oratórias das partes, do perfil burocrático e pragmático do meio jurídico, do maior o menor sucesso dos agentes jurídicos, e dos resultados dos pareceres judiciais. Esse verticalismo estaria dado pela tradição religiosa do Estado, que nas sociedades ocidentais esta profundamente enquistada no seu desenvolvimento especialmente nas suas dimensões política e jurídica.
Poderíamos então caracterizar esse espaço por sua carga religiosa, elementos simbólicos de distintas hierarquias dispostos segundo relevância por cima ou à esquerda ou direita do estrado do Magistrado, mobiliário e vestimentas similares às utilizadas na liturgia, léxico, modos e oratória do promotor e da defesa próprios do âmbito religioso, destacando-se o uso do latim, e a disposição de publico espectador frente aos condutores cerimoniais e aos atores do processo, promovendo um perfil sacro e litúrgico.
E seguindo com o lineamento do espaço religioso, sacro e litúrgico, a retórica ou oratória de ataque e defesa joga um papel preponderante nesse espaço, herdado do contexto religioso, onde os argumentos embasados de contextualidade e de fundamentos jurídicos apresentam e discutem planos de realidade, níveis de verdade, a interpretação das Leis e da sua aplicação, porém ponderados por um gestor da verdade e da norma que decide se o fato enquadra com normativas e perfis supra-pessoais, inerentes ao Estado e à moralidade própria deste agente. Esse gestor da verdade e da aplicação das Leis e de suas Sanções, o Magistrado, atua como um agente intermediário entre o ente intangível, o Estado e o tangível, os indivíduos, numa divisão do sagrado e o profano, dado assim também pela Lei e a Infração, sem solucionar ou arguir sobre o fato, mas só impondo um veredito limitado pela norma preestabelecida.
Nesse espaço, um conjunto de complexos se articula entre normas e ações com vista a proteger o Estado e a ordem social, porem os indivíduos alienados dos processos jurídicos vem-se desprotegidos e atacados pelo sistema, o imaginário se recria, a partir da carga simbólica do âmbito jurídico, de lugar da justiça para lugar de confissão e castigo, e onde a personalidade desaparece para ser só um enquadre normativo fora do entendimento do sentido comum. É o espaço cumprindo com sua função social dentro de um ato regulatório, mais não no sentido de inclusão e participação já que o individuo é excluído como tal (e como ser social com personalidade) nos processos, também ao desconsiderar a relevância dos contextos e da bagagem cultural, sendo destacado como objeto do fato e como destinatário das medidas pertinentes apesar de qualquer atenuante ou agravante que possa fundamentar as resoluções jurídicas.
Por estas razões e outras subjacentes, propomos elaborar uma analise critica sobre os processos e as articulações dentro do espaço construído nas audiências jurídicas, como a atuação da hegemonia instrumentada simbolicamente, a relevância da personalidade dos atores sociais e a qualidade do julgamento deferido.
Alguns questionamentos para desenvolver e tentar responder.
O espaço construído socialmente e culturalmente no ocidente para a interação jurídica, para as relações e processos jurídicos, é adequado à objetividade do julgamento e ao laicismo declarado do Estado moderno? A hegemonia mística deve ser um parâmetro pragmático para os agentes e atores envolvidos nos processos de julgamento jurídico? A construção do espaço físico e simbólico nestes ambitos jurídicos deveria ser repensada para permitir uma melhor interação entre as partes sem o fator coercivo prévio, como a presencia mística ou o autoritarismo hierárquico? A norma ou a tradição configuram este espaço? A Personalidade é relevante para o Direito nesse espaço?
Iremos estudando e desenvolvendo estes questionamentos, para tentar aproximar-nos de uma resposta gerando propostas a partir de analises subsequentes.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Ao encontro do Nomoespaço

Algumas vezes nos encontramos no meio da multidão, perdidos, tentando achar essa trilha evidente, porém velada aos nossos sentidos.
O descobrimento dos vestígios de passos esquecidos num rumo incerto sobrepõe toda ansiedade de errante, quando a dialética imediata não consegue resolver um problema simples de questionar, mas complexo de responder, a relação entre o espaço e os indivíduos, como nós atores sociais atuamos e definimos nossa dinâmica espacial dentro de um contexto limitado por regras, por Leis.
E é no Nomoespaço, uma categoria geopolítica definida por Paulo Cesar da Costa Gomes no seu livro “A condição Urbana” [1], onde encontramos uma relação particular da Sociedade com o Espaço, regida por Leis do Direito que regulam as relações entre indivíduos num território e num contexto social dado. Nessa espacialidade estão circunscritos nossos limites e a nossa esfera de atuação, e é ali onde a nossa bússola sem norte gira descontroladamente tentando indicar o posicionamento do domínio publico e o domínio privado no cotidiano.
Incerteza? Talvez, porém há muito mais para ser compreendido nos lugares do cotidiano e nos instantes de duvida e de decisão, como no Nomoespaço onde a liberdade e o direito são inerentes aos Indivíduos, ao Estado e à Sociedade, confluindo as dimensões do Publico e do Privado, e construindo um espaço político onde o ator social se desenvolve.
As Leis do Direito funcionam como coesão nestes espaços onde são projetadas e para o qual foram estabelecidas, e dão um viés para determinar um território, um lugar, um ambiente, para discussão de problemáticas, para formulação e reformulação de teses e leis, para atuação política, para o exercício da liberdade fundado na comunhão dos indivíduos no contexto social.
Novamente no meio da multidão, já não estamos tão extraviados, agora as trilhas são caminhos traçados dento de limites estabelecidos para poder circular, e as escolhas determinarão nosso destino e nossa ação, a participação o nosso desenvolvimento e o conhecimento a nossa liberdade. -
Damian G. Katche


[1] GOMES, Cesar da Costa. A Condição Urbana: Ensaios de Geopolítica da Cidade. Rio de Janeiro: Bertrand, 2002.